O biólogo Pedro Trasmonte, atual responsável pela nossa horta e bosque, representou o projeto Gota+Verde no I Encontro Educação, Saúde Mental e Natureza, organizado pelo Instituto de Psicologia da USP, em São Paulo, nos dias 5 e 6 de setembro. Deste encontro, Pedro escreveu esse artigo para compartilhar as reflexões e provocações dos debates e rodas de conversa que participou. Uma boa leitura:
Na última semana, pude participar do I Encontro Educação, Saúde Mental e Natureza, oferecido pelo Instituto de Psicologia da USP. Dentre as reflexões, com destaque à fala da Prof. Dra. Lea Tiriba, UNIRIO, a principal provocação foi à respeito do chamado “Transtorno de Déficit de Natureza” que as crianças sofrem de maneira generalizada nos espaços urbanos atualmente.
Esse transtorno, construído e impulsionado ao longo principalmente do último século, diminuiu drasticamente o raio de ação de liberdade de uma criança no ambiente urbano. Isto é, no início do século XX, as crianças tinham permissão de explorar o seu bairro e cidade numa proporção infinitamente maior que os dias de hoje. Na geração de nossos avós e bisavós, elas saíam para brincar pela cidade e consequentemente exploravam as possibilidades e curiosidades da natureza com muito mais naturalidade.
Hoje, por conta da urbanização e a cultura de violência generalizada na sociedade, a mobilidade urbana das crianças foi reduzida e o explorar livre acontece, geralmente, entre as quatro paredes dos ambientes em que se inserem, com destaque às suas casas e escolas, quase sempre distantes do mundo natural.
Como seriam nossas crianças se pudessem ser verdadeiramente livres para serem crianças, sem a cultura de aversão ao risco (medo de cair, se machucar, se sujar)?
A cultura do consumo, geralmente de materiais (brinquedos) de plástico, vem para substituir a vontade inata de experimentar e vivenciar o mundo, contribuindo para o transtorno de déficit de natureza. Ora, se não podem correr livres pelos ambientes físicos, as crianças correm pelo ambiente digital.
A digitalização desenfreada da infância, especialmente hoje como consequência do isolamento social necessário pela pandemia, carrega consigo diversos problemas de natureza física, social, mental e ambiental, tais como obesidade, sedentarismo, dificuldade de socialização, irritabilidade, imediatismo e aversão/repulsa pelos elementos naturais (pisar/tocar na terra, brincar descalço, deitar na grama, etc).
Os territórios educativos, hoje, são vistos como os principais locais onde as crianças terão as experiências do brincar, da socialização e do contato com a natureza. Porém, na contramão, os mesmos territórios dificilmente possuem, em sua maioria, espaços abertos/naturais que possibilitam às crianças essas experiências e vivências com a natureza.
Muito se fala dos benefícios das crianças na natureza, mas temos natureza para as crianças nos espaços de convívio coletivo?
É preciso arvorecer e verdejar cada vez mais os espaços educativos se queremos possibilitar essas experiências às nossas crianças, criando conexões que vão além do botar a mão na terra e criar anticorpos, mas permeando a construção de identidades naturais e culturais que nos religam à quem somos, de onde viemos e para onde iremos.
Seguindo essas reflexões, o Encontro possibilitou uma vivência dos participantes com professoras indígenas Guarani M’byá, na Casa de Culturas Indígenas do IP-USP. Na vivência, as professoras refletiram junto aos participantes da importância dos saberes ancestrais e tradicionais na construção de pedagogias libertadoras e que promovam a consciência sócio-ambiental desde cedo, onde a natureza seja vista como parte integrante da identidade humana, com seus ciclos respeitados, e não como algo apenas a ser explorado/usado em nosso benefício, mesmo que de forma sustentável.
Complementando as reflexões das práticas pedagógicas libertadoras, tivemos a oportunidade de conhecer diversas iniciativas em espaços escolares que buscam possibilitar o contato das crianças com a natureza, que ocorre praticamente apenas através de práticas de horticultura urbana. Também tivemos a oportunidade de observar as aves na área aberta do campus, numa atividade denominada “passarinhar”, além do plantio de uma Palmeira Juçara como símbolo do Encontro, práticas que podem ser adotadas e exploradas na rotina escolar com mais frequência.
Os territórios educativos são potências. Imagine como as escolas podem compor o sistema de áreas verdes das cidades, funcionando como pólos difusores da biodiversidade, contribuindo com serviços ecossistêmicos que melhoram a qualidade de vida e ambiental urbanas, tais como aumento da permeabilidade do solo (contribuindo para diminuir os alagamentos, por exemplo), melhor conforto térmico e qualidade do ar, suporte à biodiversidade, etc.
Na cidade de Santos, por exemplo, o último levantamento do IBGE apontou que existem 228 territórios escolares. E se todos fossem potenciais polos verdes? Como seria a nossa cidade e região? Como seria a saúde mental da nossa comunidade escolar?
O que fazemos na Gota
Como é interessante participarmos de reflexões e discussões e constatarmos que a nossa casa, Gota de Leite, já semeou diversas destas ideias de fortalecimento da relação criança-natureza-liberdade que circulam nos debates. O brincar livre já faz parte da nossa rotina pedagógica, nossas crianças podem circular pelos espaços e explorá-los à seu gosto e interesse.
Nossos jardins são vivos, mutáveis, cujo sentido permeia valores muito além de estéticos, são espaços que funcionam como laboratórios de biodiversidade e pedagogia socioambiental.
Nossa horta, em constante transformação, explora os valores dos alimentos e possibilita às nossas crianças explorarem os sentidos sensoriais do corpo humano, interconectando-os com o meio natural. E o nosso Bosque, uma jóia verde preciosa crescendo no meio de um bairro extremamente urbanizado, funciona como exemplo do pólo difusor de biodiversidade discutido no Simpósio, com o plantio de espécies vegetais nativas da Mata Atlântica e frutíferas que, dentre os benefícios dos serviços ecossistêmicos, por exemplo, comprovadamente já atraíram diversas espécies de aves e borboletas, identificadas e introduzidas no nosso material de apoio pedagógico.
Sigamos caminhando, semeando e verdejando nossos espaços de convívio coletivo. Que, em nosso caso, a Gota de Leite possa se tornar referência de iniciativas inovadoras de fortalecimento das infâncias com a natureza colocadas verdadeiramente em prática.
Sigamos caminhando e semeando.
texto e fotos por Pedro Trasmonte
biólogo e gestor ambiental